04/01/2007

Viagens

A caminho de casa, quem viaja de transportes públicos experimenta as mais variadas sensações. Quem, como eu, sai da lata de sardinhas que é o metro de Lisboa à hora de ponta, para o comboio da ponte, passa do desesperado e impotente aperto contra desconhecidos para o conforto de um lugar almofadado ao som de música clássica que vale noventa eurinhos mensais – sim, que ouvir Chopin fica caro!

É talvez esse conforto, equivalente a desabotoar as calças depois de um almoço fausto, que permite, justifico eu, determinadas veleidades a alguns utentes. Acontece, não raras vezes, passar vários minutos no metro encurralado entre cinco fartas senhoras de idade avançada – que o estereótipo obriga a conversa fiada – sem ouvir vivalma… Já no comboio não sucede o mesmo.

Quantas vezes não nos sentamos lado a lado com um casal a discutir… Vai ela “hás-de cá vir mais vezes seu estúpido”, vai ele “se eu não for não vai mais ninguém!”, vou eu “será que já passámos o Fogueteiro? Pareceu-me mesmo que… se calhar não…”… Ou, então, a uns lugares do tipo engravatado que fala ruidosamente ao telefone com a irmã, dizendo “então, não pagas a viagem ao teu mano até ao Alentejo?”, rindo-se para os colegas do lado, e apontando para o telemóvel a dizer “é cheia dele, até incomoda!”.

Hoje, enquanto folheava o sugestivo livro que me foi oferecido no natal pelo meu encenador – “Eu escrevo peças de teatro – Guia prático da escrita criativa” – não pude deixar de ouvir o monólogo enervado de um rapaz de vinte e poucos anos, bem vestido, aprumado, magro e alto. Nem eu deixei de o ouvir, nem as outras dez carruagens, tal era o volume da sua voz! À sua frente sentava-se uma rapariga que assentia a tudo o que ele dizia tentando evitar falar, para que as atenções dos outros passageiros não se centrassem em si.

Começou o irado orador com um “A mim eles não me apanham outra vez! Sempre que vamos todos jantar é a mesma coisa! Parecem crianças! Estou farto, farto disto!”
Conseguiu a minha atenção. Gesticulava e empunhava o indicador à frente da cara da pobre rapariga enquanto se queixava “deles”.
“Não achas que foram muito longe desta vez?” … “Ah, tás a ter a mesma reacção da Carla quando lhe contei isto!” O que a rapariga disse não ouvi, certamente pela normalidade do seu tom de voz e consciência de que estava em público.
“Não vou a mais nenhum jantar. Hoje passei pelo Diogo e não o cumprimentei. Ele percebeu”.
Questionava-me o que teriam feito ao rapaz, quando, de repente, soltou a palavra mágica que fez cair a agulha de croché da senhora, acordar o velhote e separar os lábios dos adolescentes:
“Laxante! É ir longe demais, laxante!”
O rapaz parecia-me agora mais amarelo.
“Laxante num refrigerante! Eles não sabem que não devem, em primeiro lugar dar assim laxante a alguém, e depois que o laxante não se põe em refrigerantes?”
O rapaz parecia-me agora mais magro, faces mais chupadas para dentro.
“Não imaginas o que aquilo me fez! Nunca tinha estado assim!”
Podia jurar que lhe vi gotículas de suor nas têmporas.
“E não foi pouco, foi praí meio frasco!”
Por esta altura já eu procurava câmaras nos sítios mais recônditos e auscultadores escondidos.
“Agora imagina que me tinha actuado quando estava aqui no comboio!”
E esta foi a única altura que o rapaz brincou com a situação…
“Ainda tinha alguém de vir comigo para eu conseguir, quero dizer, tás a… eheheh…”
Fechei a boca e cocei a cabeça. Troquei olhares cúmplices com alguns passageiros.
“Porque é que sou sempre eu a levar com isto? Explicas-me?”
Não sei o que ela disse, mas sei que quem conta a um comboio inteiro que foi envenenado com meio frasco de laxante e diz não saber porquê, merecia levar com um frasco de laxante inteiro. Com coca-cola!

4 comentários:

Joana disse...

Conversas de comboio... sempre surpreendentes, e... poucas coisas fazem o tempo passar tão rápido! ;)

Jinhos.

Joana Caetano disse...

havias de viajar todos os fins-de-semana na caminete carreira Asa Douro, com destino a C.Paiva...

Flanco disse...

Muito genial...se o adjectivo não valer por si, só!
Parabéns!

Le disse...

Ehehehehehe. Só agora (17 de Janeiro) tive a oportunidade de me gargalhar com este pequeno retratar do teu quotidiano. Acrescento apenas, que juntamente com o laxante, deveriam juntar ao refrigerante desse defecador artificial um pouco de raticida também...