19/04/2006

O Agente Boby e o Mistério Pascal


No nosso metié quando o telefone toca, nunca é para nos pedirem um disco. Regra geral, depois de confirmarem que nós somos mesmos nós, cantam-nos um fado triste, que, na maioria das vezes, tem uma letra estafada e lírica de quem só sabe três acordes. Aquele foi diferente, eu devia ter estranho principalmente quando ele começou a apelar a um ponto de ordem na chamada e a cronometrar-me o tempo que eu falava. Pensei que era apenas um avarento com medo da dolorosa mensal da PT.
Eu não gosto de vender os meus préstimos avarentos, regra geral protestam sempre da factura e não raramente demoramos mais a receber o devido do que o tempo que gastamos a merecer emitir a factura. Mas não é todos os dias alguém liga a pedir para encontrar-mos 119 pessoas de atacado. Avisei-o logo que não praticava preços de grupos, queria ser pago por cabeça. Ele tentou sossegar e coisa ia azedando:
- Não se preocupe, quem paga é o Estado. - disse ele.
- Pois, mas comigo é pagamento a pronto. - retorqui.
Ele tentou sossegar-me:
- A contabilidade depois trata disso. – desdenhou ele.
Felizmente ainda não lhe tinha dito o preço, fiz um cálculo rápido: Três meses à espera, segunda via da factura, 35 chamadas de 30 minutos cada, mais dois meses à espera, terceira via da factura... fiz-lhe o preço dobrado. Não se queixou, achei estranho, quando não se queixam é porque não pensam pagar. Ou alguém paga por eles ou então esperam que a vida me retribua o favor que lhes fiz. Mas estava curioso e dirige-me á morada indicada.
Era um palacete enorme. Fiquei logo de olho no mordomo. Eu leio muitos policiais.
- Venho falar com o Sr.Gama.
- Eu vou ver se o senhor presidente o pode atender,
Estranhei o tratamento. Ainda pensei em argumentar com o pinguim que o presidente é que me tinha chamado, mas cheiro-me que o pinguim já tinha visto muito glaciar a derreter e a correr por baixo das mais variadas pontes. Aguardei. Ele chegou afogueado.
- Boa tarde Sr. Boby ainda bem que conseguiu vir tão rapidamente.
Já o pinguim me tinha surpreendido, mas os pinguins estão treinados para reagir friamente ás coisas. Se algum deles estranhou o facto de eu ser um canídeo nenhum o deixou transparecer.
O cliente explicou-me o ocorrido. No fim da tarde de quarta-feira deram pela falta de 119 deputados.
- Porque tão tarde?
- Eram quando eles faziam falta.
- Ia iniciar-se a discussão?
- Não. – explicou-me – íamos iniciar as votações.
E largou-se numa longa explicação sobre o fundamentos da nossa democracia parlamentar. A meio perdi-me mas ficaram as ideias base.
Primeiro o povo vota, e vota nos partidos. Os partidos sentam lá uns senhores cuja função é levantar o braço quando lhes mandam.
Ainda lhe perguntei se não podiam ser outros braços a serem levantados. Ele explicou-me que assim a nossa democracia representativa ficaria ferida de morte.
- O povo votou para serem aqueles braços a votar como lhes mandam e não outros. Não pode ser qualquer um a levantar o braço quando lhe mandam.
Já há muito que aprendi a respeitar a crenças absurdas dos humanos. Eu alço a pata esquerda ou a direita dependendo do lado que o poste está, mas os humanos são todos dados aos rituais e aos protocolos. Há coisas que não vale a pena tentar perceber. E de qualquer forma estava a ficar cheio de dores de cabeça, como sempre acontece quando alguém me tenta falar de politica. E já sabia o fundamental, os 119 deputados apareciam ou o parlamento ficava parado.
- O país não pode ficar paralisado! – exclamou ele.
Deixei passar a hipérbole.
Quem tinha feito o trabalho não era de todo sectário. Do PS tinha desaparecido quarenta por cento da bancada, do PSD evaporara-se 66%, do CDS-PP desapareceram 5 deputados, do pcp dois e do bloco de esquerda apenas um. Dos verdes curiosamente não tinha desaparecido nenhum, o que me levava a especular que os raptores não gostavam de deputados recicláveis.
Quis saber quando tinham sido vistos pela última vez. Não sabiam, O Gama lembrava-se de os ter visto na tomada de posse, depois deixará de olhar.
- Só me lembro de ver os braços no ar, mas não posso jurar que agarrados a eles estivessem deputados.
O pinguim avançou com a ideia de verificarmos o livro de presenças. Reduzimos a lista a 82 deputados que tinham assinado o livro de manhã e que não se encontravam na sala ás 19h00. Tentei seguir o caminho habitual dos desaparecimentos. Mas nada. Nenhum dos dois conhecia bem os hábitos dos deputados faltosos. O facto de passarem o dia a ler os jornais, a dormir e a conversar não me permitia concluir nada. Pela cara que fizeram quando lhes perguntei se os desaparecidos tinham inimigos ou alguém que os invejasse percebi que estava no caminho errado. Resolvi ir visitar o espaço da ocorrência.
- Cheira a coelheira – queixei-me
- Coelheira?! – indignou-se o pinguim.
- Realmente – concordou o Gama.
- Eu peço desculpa Sr. Presidente, nós fazemos o que podemos, mas eles são tantos... – tentou justificar-se o Pinguim.
- Não – atalhei eu – isto é cheiro de coelho, mesmo.
Duas horas depois abandonei o palácio. A vida é assim, a verdade faz strip-teasse na nossa cara e nós só a vemos depois do lap dance ter atingindo limites escandalosos. Era a véspera da Páscoa, os desaparecidos eram redondinhos e estavam regra geral paradinhos. Mas foi o cheiro de coelheira que me despertou para a realidade. Enquanto me afastava do Palácio ainda ouvia ao longe os gritos alegres do pinguim e do Gama.
- Sr. presidente, está aqui outro.
- E aqui mais um, ajude-me a desenterrar este.
O Coelho da Páscoa está a ficar senil. Na pressa de ocorrer a todas as solicitações tinha confundido os deputados mais anafados com ovos da Páscoa e tinha-os enterrado no jardim em frente. É o que faz tentar despachar o trabalho.

2 comentários:

Lia Ferreira disse...

Bravo Boby!

ricardo leite disse...

bem, ás vezes é necessário um cão para fazer o trabalho de um homem!
não é por acaso que foi a laika o primeiro ser a visitar o espaço!
é perciso alguém (ou alguma coisa) trabalhar, sem ser em benefício próprio, para ver as coisas tal qual elas são!