04/02/2007

Não ao referendo, por duas razões


1. A pretensão subjacente ao referendo, de democratizar o sistema e permitir aos cidadãos uma participação activa e directa nas decisões, não passa disso mesmo, de uma mera pretensão, letra morta, jamais praticada ou praticável. O referendo é nitidamente anti-democrático. O conceito de que existem temas essenciais cuja decisão deve caber directamente ao povo é anti-democrático. É um argumento podre, incoerente. É uma pré-assumpção da falibilidade do regime que visa apoiar. A democracia assenta na legitimação pelo povo, através do sufrágio, dos seus representantes para a tomada de decisões. Esses representantes decidem todos os dias quantos euros receberá o meu pai de subsídio de desemprego ou os meus avós de reforma. Esses representantes decidem todos os dias quem mandará na justiça pública, quem será absolvido no natal dos crimes que praticou, quantas árvores deverão ser replantadas pelas que ardem todos os anos, o que acontece aos que as incendeiam e que meios existirão para prevenir. Esses representantes decidem todos os dias a quantidade de CO2 emitido pelo nosso país e quanto pagaremos por excedermos as quotas, quantos quilos de areia e pedra serão arrastados para a costa para impedir a entrada das águas, de onde vem essa areia, que fazer às pontes que caem por ter saído de lá areia, que indemnização dar às famílias dos mortos, desses e dos que vão para as guerras, porque é que vão para as guerras e para que guerras vão. Esses representantes decidem tudo isso e muito mais. São eleitos e pagos para isso. Para decidir. Também deveriam decidir a despenalização do aborto. Estão para isso legitimados. Se os legitimamos para o resto, também o fazemos para isso. A representatividade democrática tem de ser quase ilimitada, ou adultera o regime que visa proteger.

2. Mais! Eu não sei o que votar no referendo. Não faço a mais pequena ideia. Ouvi-os todos. Os debates, os professores de direito, os políticos, os treinadores de futebol, as tias, os tios, os populares, as adolescentes, os de direita, os de esquerda, os taxistas, os médicos, os cientistas, os padres, os ateus, as Odetes Santos e os Padres Feitores Pintos. E ouço toda a gente com tanta certeza sobre uma coisa tão séria e grave… Decidem o compromisso entre o livre arbítrio e o fim de uma vida com notáveis e públicos finca-pés. E eu não sei o que votar. Não me sinto capaz de o fazer, nem quero sentir-me obrigado a isso porque a consciência democrática assim o impõe. Estou farto! Farto que a esquerda chame a si o sim e a direita o não, embora as duas defendam o sim à vida. Farto das musiquinhas fanhosas dos tempos de antena, dos outdoors coloridos, dos visionários vídeos no youtube, das t-shirts, dos pompons, canetas e bonés. As imagens de grávidas, de bebés, de prisões, de bisturis, de artigos do Código Penal. Estou farto de ver e ouvir campanhas sensacionalistas, cor-de-rosa, chocantes, americanizadas. Estou farto de ver os mesmos extremos com os mesmos argumentos, de ver o primeiro-ministro a tomar posição pública quando não decidiu no lugar de direito. E porquê? Porque é que há tanto dinheiro para isto? Porque é que tanta gente aparece e grita pintada? De onde vem o dinheiro que as apoia? Porque é que o “não” tem os rios de dinheiro que dizem que tem? Porque é que já há uma clínica espanhola em construção em Lisboa, se ainda não há decisão a favor do “sim”?

Referendar um tema destes, com os nossos políticos e a nossa sociedade é a perfeita antítese do objectivo inicial do instituto. A democracia tem sido diariamente desacreditada quando, supostamente, o oposto se pretendia.

Este referendo ao aborto é um nado-morto.

14 comentários:

Palmilha Esquerda disse...

Lá se vai o equilibrio. Tu era suposto seres o gajo de direita nesta coisa. Assim não vamos lá.

E olha, vota sim, e que cada um depois decida por si. E espermos que os que tiverem efectivamente e pessoamente de decidir, que decidiam não.

É a unica solução.

e disse...

palmilha direita, junta-te a nós, no "bonecas a arder", já definimos a nossa posição neste referendo: escrever um poema no boletim de voto!!!

Anónimo disse...

Estou com o palmilha esquerda....Cada um tem de ter o direito de decidir por si para isso é preciso que a lei mude.

e disse...

galinhada!

Pop-up disse...

não dá para votar SIM e escrever o poema noutro lado qualquer?

Lia Ferreira disse...

não discordando do princípio da coisa, parece-me importante não deixar passar de novo a questão em branco e não permitir que continue tudo na mesma...

Anónimo disse...

Também não sou a favor do referendo mas não posso deixar tudo na mesma!

Joana Caetano disse...

O referendo não devia existir, mas é importante que votem todos sim, apesar da ideia do poema não estar nada má. Vai ser isso que vou fazer nas próximas eleições!!

Helena Henriques disse...

O que propões Palmilha direita? Que os iluminados decidam pelos governados e pobres de espírito? Achas mesmo que resquícios de democracia directa são assim tão perniciosos? Achas mesmo que depois de referendado há pouco tempo era politicamente razoável legislar em contrário? Se calhar, é preciso resignar-nos ao colectivo que formamos. Antes de resignar-me votarei Sim. Depois, espero que decidam não.

Leo Valmont disse...

GANHOU O SIM!!! Acabei agora de saber.
Eu fui votar... CLARO QUE SIM!!

Anónimo disse...

a democracia, o poder do povo, não é obrigatoriamente representativa.
Para ser participada, se calhar tem que ser, por vezes, participativa. Como acontece com o referendo.
Que sendo coisa pública, é siamês da propaganda...

Eu tirava-lhe a exigência da participação de 50%+1 dos eleitores para ser vinculativo. Talvez assim se acabasse com muito do ruído. É que num referendo só há duas hipóteses: manter a situação actual - não - ou mudar o paradigma - sim. Sendo que com aquele requisito dos 50%+1, os que são pelo não podem preferir não votar: mais vale perder por muitos mas não haver um resultado vinculativo do que perder por poucos e ver a situação ser alterada.
De qualquer modo, tratando-se de política, da coisa pública, será sempre impossível acabar com as feiras e as marionetas do costume...
Quanto ao mais, não se apoquente a palmilha esquerda: haverá algo mais conservador do que desejar que alguém decida por nós?

Palmilha Direita disse...

Em alguns comentários o anonimato é uma benção, noutros é pena. Neste caso tenho pena de não te identificares. Apesar de não saber a quem e de discordarmos, agradeço a boa resposta.

Palmilha Esquerda disse...

Não tenham ilusões, só há referendos quando os decisores políticos não têm a coragem politica de assumir a responsabilidade das decisões que pretendem tomar. Isto em Portugal, claro. Como muito bem diz a Palmilha Direita eles decidem, e estão mandatados, para opções bem mais facturantes e ambíguas sem nos consultarem e sem as previamente as reflectirem nos programas eleitorais.
Apenas referendamos duas questões, o aborto – porque o PS não quis assumir, há oito anos, os eventuais custos políticos de mudar a lei – e a regionalização – porque nem o PS nem o PSD quiseram assumir os custos políticos de a não fazer. E a coisa resultou bem, inventaram o disparate das oito regiões cavando, ainda mais, o fosso entre o litoral e o interior veiculando a opção da regionalização a uma opção disparata que ninguém no seu perfeito juízo queria. “E assi se hacem as cousas.”

Anónimo disse...

Já que estamos numa espécie de brain storming político, aqui vai mais uma: proponho que os nossos representantes deixem de ser apenas politicamente responsabilizados. Ou seja: quando um senhor se candidata, por exemplo, a 1.º ministro dizendo que vai baixar os impostos, se fizer exactamente o oposto, deve ser corrido imediatamente do cargo... e, porque não?, sovado na praça pública com vegetais podres!

abdicando da capa do anonimato, com que vos acompanho há algum tempo (a primeira vez acho que foi na tertúlia castelense, onde cheguei na companhia de outros que também frequentaram a rua do campo alegre e a praça coronel pacheco ao mesmo tempo que o rodrigo), chamo-me tiago e só não vi o v. último trabalho porque presumo que alguém não tenha tomado cêgripe