03/05/2006

A Broa Da Vinci – Parte II – Altos e baixos

... Tudo se passou numa tarde de terça-feira. O dia estava tão cinzento como as páginas do jornal velho que folheei pela manhã entre o trago de um café e um charuto. Na rua tudo igual... A mesma azáfama de sempre numa manhã de emprego. Também eu me dirigia ao meu escritório poeirento de rua da baixa da cidade quando, de repente, algo se intrometeu no meu caminho! Era um parquímetro... e doeu. Tentei recompor-me com um sorriso de orelha a orelha enquanto me levantava, endireitei o chapéu, sacudi a gabardina e prossegui.
Por esses dias andava um farrapo daquilo que já tinha sido. Não ver parquímetros é mal menor quando comparado com meias trocadas, sapatos rotos e gravatas sujas com mostarda de cachorro. Estava tão em baixo que num dia qualquer da semana anterior me apanhei a sorrir de satisfação quando ouvi o homem do trânsito, daqueles que, na rádio, nos dizem por onde ir ou por onde não ir, a aconselhar os ouvintes a fugirem da confusão pela estrada onde eu seguia. Fiquei feliz, não porque tenha acertado na estrada com menos trânsito, mas por ter sido lembrado por um desconhecido que existia uma estrada onde eu estava.
Cheguei ao escritório e atirei o chapéu para cima da mesa onde outrora esteve sentada a minha secretária, a Clara. Chamava-lhe Claire. Ela não gostava. Foi embora movida por um mal entendido nunca desfeito: um dia tropecei no ar e tive de me segurar às suas voluptuosas ancas, enquanto ela, curvada, lia qualquer coisa na mesa. “Temos de mandar arranjar estes rodapés!”, disse eu. Tarde demais. Ainda não tinha acabado de dizer “madeira de cerejeira” quando dei por mim sem a Claire, com uma mão marcada na cara e menos uma gramas de orgulho. Convenhamos que na altura já pouco me restava.
Depois de atirar o chapéu para a mesa da saudosa Claire, fechei a porta onde se podia ler na vidraça “J s´ Engr a – P iv te y ”. Outrora leu-se “José Engrácia – Private Eye”.
Sim... Eu outrora tinha tido um nome com nível num escritório com uma secretária chamada Claire de ancas voluptuosas. Mas na altura já tinha apenas uma série desordenada de letras numa porta velha e uma marca nas costelas com a inscrição “0,30€ / 1 hora”. Tudo desmoronou em avalancha a partir do momento em que a minha mulher me deixou. Eu tinha um casamento feliz, daqueles em que há uma casinha de cerca branca com relvado pela frente e um alpendre com uma cadeira de baloiço, onde se apanha sol ao fim da tarde ou se usa para fingir que se dorme depois de mandar umas fisgadas aos putos que regressam da escola. A minha Jenny (o seu verdadeiro nome era Genoveva) por vezes também se juntava a mim nas fisgadas do crepúsculo... Estroinices de recém-casados! Parecíamos religiosos fanáticos e a nossa religião era o amor que sentíamos um pelo outro. Pode dizer-se que éramos como Judeus e Cristãos antes de Cristo: unha e carne até nascer um puto. Já não brincávamos mais no alpendre, acordávamos a meio da noite para mudar fraldas e ela não achava piada nenhuma ao nome que eu dei ao rapazinho. Chamava-lhe Billy, Lil’Billy ou simplesmente Kid. Ela ralhava comigo, dizia que era uma estupidez, que o rapaz se chamava Guilherme e que devia ser chamado por Guilherme, porque senão iria crescer no mesmo universo conturbado que eu cresci, no limbo entre realidade e ficção. Eu ri-me e soltei um “limbooooooooooo”. Ela fez as malas e saiu. Eu nunca mais fui o mesmo. Senti que uma parte importante de mim tinha sido cortada. Está bem de ver quem ficou com o papel do Judeu na história...
Nessa terça-feira, porém, tudo se comporia. Entrei no meu Gabinete, sentei-me na secretária, peguei num processo de um cão desaparecido e estiquei as pernas na secretária. De repente, bateram-me à porta...

4 comentários:

Fabulosa Marquise disse...

Bem, devo ser a primeira que está aqui pra dizer bem de alguma coisa que vocês façam... Reparo que cada contra-dentada é uma dentada num braço do "poster"... Não haja dúvida que críticas "construtivas" é convosco... De qualquer forma... gostei muito do texto... principalemtne do limboooooo... Beijos Palmilha Direita... fico à espera de ler o conto premiado...

Pop-up disse...

desculpem a minha dúvida teológica, mas já havia cristãos antes de Cristo?
quem era o cristo nesse tempo?

Palmilha Direita disse...

Enfim... Cristos somos nós todos, que temos de aturar coisas destas..

Anónimo disse...

se este último comentário for ao post... faz todo o sentido.
otherwise, i see no point on it!

anónimo...
...para não incitar a duelos inadequados ao propósito do blog.