19/04/2006

Mirtilo

Mirtilo.
Apostei nesta palavra não por ser pequena, mas porque é o que vale. E, depois disto, o interlocutor desatento poderia pensar que ela vale o seu peso em letras, mas se cada letra tivesse kilos, o i era ridiculamente flutuante, na sua matéria esguia e pedante, na presunção ostensiva que nos atira do alto do seu pontinho imbecil. Os outros animais fazem o mesmo, mas pesam menos as letras. Apostam em palavras com sons estranhos e nem sequer sabem o que é uma balança porque nunca fizeram a dieta dos discursos. Verborreiam o que lhes apetece e pousam as patas no chão quando querem dizer coisas mais finas. Portanto, aqui, fazer o mesmo é escolher. E depois atirar a escolha como uma coisa muito preciosa e que só se usa uma vez, porque depois de estar cá fora apodrece.
A dona Amélia saiu de casa pelas três da manhã e estranhou a igreja estar fechada. Mas só estranhou porque a padaria também estava de portas encontradas num trinco daqueles antigos, em que de um lado temos um ferro em pêndulo de garra na ponta e do outro lado temos um camarão em parafuso com uma arena de ar, em ferro torcido, pra receber a garra em pêndulo do ferro da outra metade. Continuou a andar. Disse:
- Oh! Oh! Oh! Também o que me deu agora pra querer levar regueifa ao altar a meio da tarde?! Oh! Oh!
O trinco não respondeu.
- Também não era pra ti! Oh! Oh!
Estava uma tarde estranha. Sem linhas de busca para nem pontos de fuga. Daqueles onde pesamos as letras em segundos vírgula milésimos. Se formos a ver bem estava uma tarde, só. O que não deixa de ser estranho porque uma tarde nunca é só uma tarde; é o chá, o sofá, o gato, a Zulmira da loja, a torrada, o Fernando Mendes, o cheiro a mofo, a fruta, a dor nas cruzes, o princípio e o fim, o comprimido das cinco, o soalho, o braço do maple no maple sem braço, o direito que se queixa porque o esquerdo tem braço no maple mas não muda canais porque somos destros e o controle remoto desfila melhor na mão da faca, a louça por lavar e o fim dos exemplos. E tudo isto está bem porque é assim. Porque não quer ser manhã.
Era só uma tarde. Nem mais uma. Ainda nem tinha chegado e já deitava contas ao tempo só para ter a certeza de não deixar fugir nada. Também, fugir pra onde? Eles nem andar podiam. Havia sempre maneira de uma das pernas se mexer e dar início à sinfonia da locomoção em compassos absurdos de damas em pé de valsa. Andar não era aquilo. Andar não era deslocar o corpo só pra ganhar tempo! E mesmo que fosse, com tanto tempo ganho em velocidades de cruzeiro, onde sobraria tempo depois pra guardar o tempo poupado a evitar tempo perdido? Andar é andar! Não tem nada a ver com o tempo. Nem com o espaço. Andar é empurrar tripas e ar um metro de cada vez, de cada vez que mexemos a carne e os ossos um metro em dada direcção. Se era assim com eles, porque não havia de ser com toda a gente? E pronto lá foram, sem pressas, dizer a toda a gente que isto até funciona se não pensarmos no tempo:
- Olhai, isto até funciona, se não pensarmos no vento!
O outro, que estava mesmo ao lado, bateu-lhe na tíbia com o calcante do controle.
- Tempo!
- No Tempo!!! O Vento até funciona se não pensarmos no Tempo!
Uma menina que estava mais à frente bateu-lhe no rádio com o controle da Tv da avó:
- Isto!
- Isto!!! Isto até funciona com vento se não pensarmos no Tempo!
A multidão, que estava na igreja, atirou-lhe com os bancos da Igreja e gritou em uníssono:
- Isto até funciona se não pensarmos no tempo!
E assim aprenderam todos, embora o Messias tivesse morrido. Sem o saber.
Um banco cravou-se no olho, outro atravessou o peito, dez caíram ao lado, quatro fizeram mais peso e dois ou três foram lanchar, porque era de tarde.
Abrir o trinco da padaria, nem foi difícil. O pior foi mesmo convencer o croissant a ser aquecido. A custo, o pasteleiro acedeu e os bancos lá comeram o bolo de massa francês regado com meias de leite muito claras. Um dos bancos, João Aveleda, era um acólito convicto. Mal acabaram o lanche, pediu prontamente o livro amarelo e quis falar directamente com o pasteleiro. Achou o serviço impróprio e muito rude e queixou-se de nem sequer os terem deixado sentar-se – isto com muita veemência! O senhor dos pastéis desdobrou-se em mil desculpas e a muito custo lá o tentou fazer entender que, sendo eles o que eram, não lhes ficava bem subjugar os seus iguais.
- Mas os seus bancos são diferentes de nós!
Vociferou João Aveleda.
O pasteleiro repensou. Parecia-lhe óbvia aquela argumentação e, mais do que isso, completamente imbatível:
- Nesse ponto tem razão. A única coisa que posso fazer é não lhes cobrar os croissants…
Depois de breve consílio, os bancos aceitaram o perdão e tudo ficou resolvido. Abraçaram o pasteleiro, sorriram durante um bocado e depois saíram todos para a Igreja, com o pasteleiro, ainda a tempo da missa das sete. Cumprimentaram o pelourinho, mas não recomendaram o croissant porque estava cozido demais. O pasteleiro não rebateu.
O pedregulho nunca achou grande piada aquilo. A estar. Só estar ali! Tinha uma coisa boa: não era muito alto, o que lhe permitia contar as pedras da calçada num ângulo de 160º. Mais era impossível, a não ser que fizesse como os lagartos da Tv, que têm olhos independentes e só voltam para casa ao fim da noite. E isto ele sabia porque passava as tardes em frente à casa da D.Amélia, cuja janela da sala deitava directamente para a praça principal. Eram 3569. As pedras. Nunca contou o granito, mas adivinhava que fosse um número aproximado.

[E que tristeza ali sozinho!
Ninguém tem pena do pelourinho?
Oh coitadinho, do pelourinho!
Há tantos dias ali sozinho!
Olhem pra ele, o nosso pelourinho!
Chorem por ele, o pelourinho!]

Lá dentro era um caos imenso! Tinha coisas a saltar como os números espalhados na praça. Mas os números contavam-se, os dias é que iam mudando! E contá-los, aos dias? Perde-se facilmente a conta aos dias porque o primeiro é o mais difícil de conter: faz-se refém no meio da testa mas escapa-se antes das zero pra voltar às zero e um. O sequestro é um círculo em torno da nossa testa e nós somos um número à volta da testa de alguém! Estamos sempre no dia um! Temos sempre tudo contado! Queremos dar tempo para ter mais tempo! Isto sem tempo não funciona! Temos de inventar outro tempo! Mesmo que o tempo não traga vento! O Vento!

[E que tristeza, ali sozinho!
Ninguém tem pena do nosso ventinho?
Oh, coitadinho do nosso ventinho!
Sempre a bufar e sempre sozinho!
Bufem com ele, o nosso ventinho!
Chorem por ele, o nosso ventinho!]

Logo a seguir, a multidão apanhou os bancos e o Messias continuou morto no adro.
- Pronto – esgrimiu a D. Amélia – assim estão satisfeitos! Mas…oh! Oh! Era preciso tanto alarido? Oh! Oh! Oh! Se ele trazia a palavra agora calou-se e finou-se pra sempre.
A multidão acusou o peso próprio das culpas infligidas. Logo se formou um grande coro e todos cantaram um salmo de retracção em ré menor, na esperança de ainda chegarem a tempo ao guichet da redenção. Ao fim ao cabo, ser exagerado é uma questão de educação quando a inibição nos afunda em silêncios. Por isso mesmo, voltaram a cantar em uníssono logo após o primeiro esforço, mas agora em volume redobrado.
Silêncio.
Repete-se a ladainha mas agora mexendo as cabeças e abrindo mais a goela.
Silêncio.
Volta-se depressa ao início e agora abana-se os outros.
Silêncio.
Prolonga-se a última letra até o rubor aparecer.
Silêncio.
Diz-se mirtilo, sem i.
Silêncio.
Deixa-se estar mais um pouco.
Silêncio.
A ver se isto assim se aguenta.
Silêncio.
Diz-se silêncio baixinho.
Silêncio.
Encara-se a medo o defunto.
Silêncio.
Pesa-se em luz o encanto.
Silêncio.
Salvou-os o sino e um pranto.

A soluçar, a D. Amélia virou costas e dançou com o caminho até casa. Triste tarde aquela! E levam-nos assim um neto por não acertar com as palavras? E agora, o chá tão frio… e as contas para pagar. E agora dizer aos senhores…e tratar de uma coisa bonita. E agora é falar por falar…sem pensar em falar por pensar. E agora a tarde é dia…sem ninguém para trazer a noite. Oh! Oh! Oh…

5 comentários:

Anónimo disse...

Prolixo.
o o que nos sujeitamos a ouvir quando se baixa a guarda ao flanco.

Lia Ferreira disse...

olá a todos, queria dizer-vos que o meu amigo mãozinhas também deixou um post a vosso respeito:
aqui
(vamos lá a ver se dali resulta um link...)
beijos tolos

Lia Ferreira disse...

e não é que deu mesmo?

mãos disse...

olá gajos. já lá tenho o vosso blog nos meus links. muito obrigado por partilharem a vossa lousa com o pessoal cibernético. boa sorte e muito sucesso.

M.M. disse...

Parabéns, gosto muito da vossa arte e desejo-vos um grande sucesso e muito trabalhinho!
Espreitem aqui um post que li sobre o vosso espectáculo (não sei deixar links como a L - lol)

http://poderthor.blogspot.com/2006/03/palmilha-dentada-recomendo-fortemente.html